A esperança de pobre nunca morre
Izaias Resplandes de Sousa
A revolta e a indignação,
inexoravelmente provoca a dor, mas essa dor é muito mais forte quando os
motivos da revolta e da indignação fazem parte de nossas próprias estruturas;
dói muito mais quando a causa da dor está dentro da gente.
Quando eu ouvia dizer que as pessoas
eram atacadas pelos coturnos e botinas das ditaduras de ontem; e que o homem se
tornava o lobo do homem; e que torturava, que sequestrava, que matava e fazia
desaparecer homens, mulheres e crianças simplesmente porque essas pessoas
ousavam dizer o que pensavam e reclamar pelos direitos de viver com dignidade;
quando eu ouvia dizer essas coisas, eu sofria muito, e, empaticamente, eu
sentia a dor que elas sentiam... Mas, quando eu próprio levei as botinadas e
coturnadas nas costelas, na cabeça e por tudo quanto é lado; quando eu mesmo
fui torturado e fui alvo daquelas agressões; quando eu fui usado e abusado e
depois largado e abandonado; quando eu fui o objeto de depreciação daquelas
forças, então a minha dor se multiplicou muitas vezes mais.
Aquelas pessoas que batiam,
sequestravam, torturavam, matavam e faziam desaparecer até os cadáveres...
Aquelas pessoas sempre pensaram que eram melhores do que eu; pensavam que eram
meus senhores e meus deuses e que eu lhes deveria obedecer incondicionalmente,
ou então sofrer as consequências.
“Deita no chão”, “ponha as mãos nas
costas”, “não se mexa”... Quantas pessoas ouviram isso somente porque eram
pobres, maltrapilhos, negros e LGBTs... Eu não quero continuar vendo isso nunca
mais. E vou lutar por essa causa enquanto eu viver.
Eu não fui castigado diretamente
pelos ditadores, mas eu sofri as consequências de suas ideias autoritárias. Eu
era estudante ginasial na década de sessenta. Meus pais eram pobres. Não havia
escola pública para que eu e meus irmãos estudássemos. E de um universo de
treze irmãos, eu e um outro fomos escolhidos para ir estudar na cidade. Meu
irmão foi morar com uma tia em uma cidade e eu fui morar com outra tia, em outra
cidade. Fui tirado do seio de minha família porque não tinha escola para mim no
lugar onde eu vivia.
E então eu fui para a cidade. Mas a
escola que tinha lá para mim era particular. E meu pai não tinha condições de
pagar. E minha tia, igualmente muito pobre, com muitos filhos para sustentar,
também não tinha condições. Mal conseguia me alimentar. E então, com dez anos
de idade, eu fui obrigado a trabalhar para pagar a minha escola. Na hora do
recreio, meus colegas lanchavam e eu sentia o agradável cheiro dos cachorros
quentes que eles comiam e sonhava com o dia eu que pudesse comer pelo menos um
pedaço de um deles acompanhado por um gole grapette, um refrigerante de uva
daquela época. Mas eu não podia nem espichar os olhos para a merenda de meus
colegas, porque só de estar ali, naquela escola de pessoas que podiam pagar
para estudar já era um grande privilégio para um filho de pobre como eu.
Aquela geração achava muito normal
que uma criança de onze anos como eu tivesse que trabalhar como um adulto. Eu
fazia a limpeza de minha sala de aula em troca da mensalidade escolar; e depois
eu vendia as coisas na rua para ter com que comprar cadernos, livros e outros
materiais escolares. E acabei tomando gosto pelo dinheiro que conseguia, de tal
sorte que, mal consegui terminar o ginásio naquele tempo, pois o que me
interessava era trabalhar e ganhar dinheiro, ainda que fossem trocados.
Perdi muitos anos de minha vida em
trabalhos corriqueiros e mal remunerados, ao invés de estudar e me tornar um
profissional de verdade. Terminei o ginásio em 1973, mas somente concluí o
segundo grau em 1984. E somente ingressei na faculdade em 1995. Foram onze anos
para concluir o 2º grau e onze anos para ingressar na faculdade. E não pode ser
de outra forma, porque eu próprio tivera que trabalhar para prover o meu
sustento, não sobrando muito tempo e disposição para estudar.
E então eu vi as coisas mudando
enquanto eu envelhecia. E veio a Constituição de 1988 e depois dela várias leis
assegurando o direito de todos ao estudo, principalmente para as crianças, as
quais foram protegidas até os dezesseis anos para que pudessem ser crianças,
brincar, estudar e se preparar para viver uma vida digna.
Mas apesar da Constituição e das
leis, os direitos não vieram sem lutas. E eu participei dessas lutas. Eu vivi
essas lutas. Eu fui para as ruas e agitei bandeiras, e fiz discursos, e
enfrentei o sistema... E então eu vi os governos lentamente mudando e se
aperfeiçoando, ao rufar dos tambores de nossas lutas na resistência em favor da
inclusão de todos aqueles que, por alguma razão social, física, cultural ou
qualquer outra que fosse, estivessem impedidos de exercer os seus direitos como
pessoas humanas que são.
E eu sou feliz porque eu vi os
pobres, os negros, os índios, as mulheres, os portadores de necessidades
especiais e toda a diversidade de gênero incluída nos programas sociais de meu
país. Eu vi os pobres comendo, estudando, se preparando para o trabalho e
trabalhando, no campo e nas cidades. E repito que não estou dizendo isso apenas
porque me contaram, mas porque eu vi e vivi tudo isso, como também a maioria da
população brasileira ainda vê e vive tudo isso até os dias de hoje.
E a luta nas trincheiras da
resistência deve continuar. Os números divulgados pelo IBGE me mostram que
estou no caminho certo ao dizer isso. A pesquisa revela que 53,9
milhões de brasileiros vivem na pobreza. E que desse total, 21,9 milhões de
pessoas são indigentes e não tem dinheiro para comprar os alimentos que
precisam. A pesquisa diz ainda que mais da metade da população do Brasil ganha
menos de um salário mínimo por mês. E que a riqueza está nas mãos de menos de
dez por cento da população privilegiada do Brasil.
E
alguém ainda vem me falar de capitalismo como a solução para esse Brasil de
pobres e miseráveis como eu! Desculpem-me os que estão dentro, mamando nas
tetas do sistema, mas não são vocês os que precisam de socorro, porque vocês
podem cuidar de vocês. E nós, com quem poderemos contar?
E ao encerrar, eu lhes digo que a
minha tristeza é ainda maior, porque até uma grande parcela da igreja, que
deveria representar a força dos fracos e oprimidos, hoje eu a vejo
adotando e seguindo o discurso
capitalista dos incluídos e favorecidos do sistema, defendendo a exclusão
social em nome de Deus, indo contra o discurso cristão de Jesus de que a missão
dele e de sua igreja é buscar e salvar o perdido, o que não tem, o pobre, o
necessitado, a ovelha errante, o que não tem ninguém por ele...
Se você é um pobre como eu, ou até
mais que eu e não quer se ver no espelho dessa narrativa, tudo bem... Eu te
compreendo, porque sei que você deve estar sonhando que já está salvo, que já
não sofre, que já tem o que precisa e que Deus veio em teu socorro. Mas eu
gritar ao seu coração: Acorda, irmão!
Seu sonho ainda não é realidade. E nós precisamos de você na luta. Junte-se a
nós: excluídos unidos, jamais serão vencidos! Excluídos unidos, jamais serão
vencidos!
E se você é um dos que tem, pode ser que você
também não queira se ver no espelho da verdade desta narrativa, porque você se
acha autossuficiente, senhor de si, independente... Mas, eu te digo que apesar
de sua riqueza e do que você tem de bens, você é muito mais pobre do que eu,
porque eu me amo e tenho quem me ama, mas você não é amado por ninguém.
E então, se vai ser eu de cá e você
de lá, fique com o seu candidato dos ricos, mas me respeite e deixe que eu
fique com o meu candidato dos pobres, porque se você não sabe quem você é, eu
sei quem eu sou e quem é minha verdadeira gente.
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